Se um “um filme fala por si mesmo” (Henry Breitrose, do Department of Communication Stanford University, no artigo “There is nothing more practical than a good film theory”, afirma que “the film speaks for itself”), ou seja, em seu modo, o filme deveria ser auto suficiente, sem necessidade de explicações a respeito, em “Um lugar ao Sol”, de Gabriel Mascaro, um extrato da elite brasileira solta o verbo e deixa claro que “se acha”.
Trata-se de um documentário, mas em vários momentos mais parece uma comédia, afinal, as caricaturas são, por essência, engraçadas.
Os personagens são pessoas que moram em coberturas de valorizados prédios das cidades de Recife, São Paulo e Rio de janeiro. E, para chegar aos entrevistados, Mascaro pesquisou em um livro que cataloga a elite e pessoas influentes. Esta informação está nos letreiros iniciais do filme, mas não se especifica qual é a publicação. Não se informa o seu nome. Dos 125 moradores de coberturas contatados, nove concordaram em ceder entrevista.
Mascaro conseguiu não apenas realizar as entrevistas, mas deixou os seus entrevistados tão a vontade a ponto de contemplar momentos “pérolas”, onde eles “soltam” expressões em tons arrogantes e preconceituosas, como se eles tivessem conversando com seus amigos íntimos.
Mais que revelar como a elite brasileira pensa, “Um lugar ao Sol” é um precioso instrumento para se pensá-la.
Interessante como este grupo, pertencente à camada mais alta da pirâmide sócio-econômica, fisicamente residem em locais mais elevados, assim como metaforicamente se consideram “melhores”. Estar por cima é uma posição física e imaginária também.
A amostra entrevistada é expressiva. As nove famílias que participaram estavam bem dispostas a falar. Afinal, se é para “aparecer”, “vamos fazer bonito”! Os relatos naturais tornam-se caricaturais, justamente pela veracidade do conteúdo. São tão reais e ao mesmo tempo tão “deslocados”, tão “sem cabimento”, que o espectador fica pensando como é que o entrevistado tem coragem de pensar e, o que é pior, de dizer o que pensa assim, na cara dura, de frente para a câmera. Eles não tem noção do quão “caricaturescas” são as suas declarações.
Muito pelo contrário, acham que estão fazendo “bonito”. Estão loucos para falar, aparecer, contar o que tem e como vivem. Mascaro apenas deu espaço para estas manifestações e ainda os poupou, não identificando nenhum entrevistado, com exceção do empresário que se apresentou e aproveitou para fazer um merchandising de seus empreendimentos, em especial do Bahamas Club, casa noturna para homens que, segundo ele, é a maior casa noturna da América Latina.
A amostra entrevistada foi feliz ao abarcar perfis significativos.
O filme começa mostrando construções de prédios. A câmera fixa em um gancho que está em elevação com foco para baixo mostra cabos de aço sendo erguidos pelo mesmo gancho. Ao chegar ao topo, operários retiram os cabos do gancho. Nesta sequência, a câmera permanece o tempo todo no mesmo plano, focalizando de cima para baixo, apesar do gancho em elevação.
E neste momento, inicia o primeiro depoimento que é de um casal de homens dizendo que “luxo mesmo, seria morar em casa. Sensação de que o aspecto da morada tá bom, não há mais porque se mudar”. “É a sensação de estar vivo”, um dos entrevistados diz, e, contraditoriamente, afirma que vendo o mar e o céu da sua cobertura, pensa que tudo isso não vale nada mesmo. E volta a dizer que isso é vida é que talvez nada disso valha alguma coisa.
Início leve, com toques sutis de egos.
Mascaro se utiliza de cenas de construção de prédios, dos empreendimentos a venda, das favelas e ainda da vista lá de cima para articular uma entrevista a outra, como conectores.
O segundo entrevistado, um playboy desquitado, já não é tão recalcado, gosta de falar, contar vantagens, falar das festas, diz que quer mesmo aproveitar. Faz questão de falar que, dos quatorze andares do prédio, sete contam com segurança particular. Então ressalta que quem mora ali é muito rico, mas dá uma de coitadinho dizendo que ele é um dos que têm menos, que ali tem gente com muito, “mais muito mais” grana que ele. Diz que nunca se preocupou com status e que não se sente só.
A partir daí, a escala é crescente, o negócio esquenta. As entrevistas começam a revelar, de modo nú e cru, o pensamento da elite brasileira. O espectador passa a ser bombardeado com inúmeras colocações arrogantes, preconceituosas e mesquinhas.
E, neste sentido, o filme prende a atenção. Diante das falas “surreais” de cada entrevistado, a expectativa é para saber o que virá depois. O negócio chega a ser hilário, coisa do além mesmo.
Na sequência, o casal entrevistado é carioca e fala do privilégio de morar no Rio. A senhora comenta que sempre morou “olhando por cima”, perto do céu. Fala a respeito das balas oriundas de tiros entre as duas favelas vizinhas, que consegue ver o colorido dos projéteis, diz, “é trágico, mas é bonito”. “Eles trocam tiros e as balas são coloridas”. “Quando se está em cima, você tem condições de participar de coisas que quem está em baixo não participa, a coisa do som”.
O marido dela complementa dando, sob o seu ponto de vista, a definição de cobertura “você sabe a definição que você aprendeu no colégio de ilha, ela está errada. Ilha é um pedaço de terra cercado de todos os lados, é o que eles te dizem. Eu digo que tem menos um, que é por cima. A cobertura é a mesma coisa, você tem a outra dimensão. É o por cima”.
Imagens de prédios de alto padrão, dando destaque para os seus nomes, a maioria europeus, como Rembrandt, Stradivarius, Versailles, Akrópolis, Cannes, Conde de Toulon, Renoir, Lumiere, Casa Alta.
A próxima entrevistada fala da sua preferência por cobertura, que ela não gosta do barulho das panelas, que as coberturas possibilitam mais privacidade. Aproveita ainda para falar que tem um barco, um veleiro com quatro quartos, onde é possível permitir a “natureza entrando em você”. É a compara com a cobertura. Diz que não tem barulho e isto é muito legal.
Cenas de pessoas caminhando, mostrando sempre do alto, a visão da cobertura.
A outra entrevistada, uma senhora de origem estrangeira, em sua casa de praia, revela que conheceu toda a nata da MPB, como Tom Jobim, Chico Buarque, Edu Lobo, Nara, Elis Regina, Vinícius de Moraes, que, segundo ela, virou um grande amigo.
Cenas de “Orfeu Negro”, com garoto em cima de um morro brincando com uma pipa em formato redondo, com o Rio ao fundo, só som de MPB. E a entrevistada diz que descobriu o Brasil através da estreia do filme Orfeu Negro em Paris. Diz que a pobreza é a falta de educação. Ela mostra a sua coleção de artesanato e comenta que o pessoal do interior é mais interessante do que o da cidade.
Ela sai do padrão do restante dos entrevistados, valorizando o caboclo, dizendo que no réveillon ela quer ver macumba e não fogos de artifícios, pois isso é possível ver em outros lugares do mundo. Como se fosse brasileira, ela, com seu forte sotaque europeu, diz “as coisas que são nossas querem acabar com isso”.
O dono do Bahamas é o próximo entrevistado. Ele revela que tem cinquenta e um anos de idade, diz que até aquele momento é dono de cinco empresas, detalhando cada uma, informando inclusive o endereço.
Imagens de prédios em lançamento, com muros que mostram as suas estruturas em desenho, maquetes com bonecos ilustrando os empreendimentos.
A senhora, próxima entrevistada, diz que vivencia estar em “outro plano”, uma sensação de domínio, que “está dominando todo espaço”. Ela comenta que é voluntária em um grupo de apoio ao câncer, em hospitais. Fala que “o egoísmo é o mal do mundo”. Diz que o voluntarismo é uma forma de acabar com o egoísmo. Afirma que a vida tem polaridade, o mal e o bem. E o bem tem que dividir, não pode ficar no “eu”.
O áudio volta aos dois primeiros entrevistados com imagens aéreas, onde um deles comenta que o incômodo vem sempre de cima. Então completa: “a cobertura alivia neste sentido, você nunca vai ter o vizinho de cima”.
E a entrevista hilária, caricatural e “fora de série” vem com uma senhora e seu filho, um playboy do estilo “eu sou o bom”. Ela diz: “O por do Sol aqui é soberbo”.
O filho sempre completando: “É uma questão de sonhos de todos, né, mamãe?”. E ainda: “A natureza está disposta a todos, a questão é a sensibilidade de cada um ter para aproveitá-la”, como se para possuir uma cobertura bastasse ter sensibilidade.
Mostra-se o nascer do sol.
Na sequencia, uma retomada aos primeiros entrevistados, o casal de homens, com cenas deles sentados, cada um em uma poltrona, folheando livros de arte, com a TV ligada em um jogo de tênis, algo bem do tipo “fiquem ai fazendo que quiser que vou filmar vocês de maneira casual”.
Volta para a família carioca (aquela que associou a cobertura ao conceito de ilha), agora com a mãe mostrando o quarto do filho, enquanto ele dorme. Ela comenta as frases de artistas e/ou pensadores que ele escreve na parede de seu quarto (um exemplo: “nem ganhar, nem perder, mas procurar evoluir”. Chorão) e completa com a “pérola” de que ele é um “adolescente maduro”.
Mas o melhor está por vir, quando afirma “este é o mundinho dele, mas com certeza é ainda mais amplo porque ele consegue ter esta vista toda”.
Mostra-se a vista, imagens produzidas por ela que diz que adora filmar a paisagem do Rio. Mostra o morro da Dna Marta, ocupado pela comunidade e ela diz “a natureza é ocupada por gente que não preserva, fazem uma coisa fechada, com regras próprias, e que tão perto, tão longe, fazem um bang bang”. Ela diz em tom de vítima que assiste a esta guerra sem participar, muitas vezes sentindo a consequência de estar tão perto.
Então, reúne-se a família, ela, o filho, que estava deitado enquanto a mãe mostrava as frases na parede de seu quarto, e o marido, aquele que falou inicialmente sobre “o conceito de ilha”, para explicarem como é morar em uma cobertura.
O adolescente diz que é muito bom estar no meio da natureza. O pai, querendo ser a palavra final, questiona como se define “qualidade de vida”, argumenta que é algo inexplicável. A mãe, acertando mais uma dentro, diz “estamos tão acostumados com isso”. O filho: “também não sei avaliar porque eu nunca morei em outro lugar”.
E neste ponto, uma interferência do diretor, perguntando diretamente se existem invejosos.
O filho comenta que quando está preenchendo um cadastro, o tratamento muda completamente quando se identifica como morador de cobertura. E o papo gira em torno da conveniência ou não desta identificação.
Cenas de pássaros voando, alternando com imagens de cima para baixo, mostrando o trânsito e também o horizonte com o sol entre nuvens, além do Cristo redentor no Rio.
Volta à família reunida na sala, onde o assunto agora é segurança. O garoto diz que em cobertura é melhor porque é mais alto e, portanto, em caso de assalto, é mais difícil chegar.
Ora, não seria ao contrário? Sempre ouvi dizer que o apartamento mais visado é justamente a cobertura, pois supostamente o morador é de mais posses.
Ele emenda listando os locais no mundo que conhece para dizer que aqui no Brasil não se tem segurança. A mãe, com seus comentários desconcertantes, diz “não é porque é pobre que é bandido”.
Cenas da cidade, com destaque para outdoors de prédios em lançamento, onde os textos ressaltam a vista dos empreendimentos.
Imagens do Rio de Janeiro, com prédios integrados (ou invadindo?) à natureza, intercaladas com imagens de favelas nos morros, também integradas (ou invadindo?) à natureza.
Aquário e fontes. Volta-se a casa do empresário da noite. Ele, mais uma vez, em tom de vantagem, relata o quanto gera de emprego e renda.
Diz que frequenta os melhores hotéis, lojas, possui os melhores relógios, roupas, as mulheres bonitas, a grande literatura, as melhores comidas, bons carros. E a habitação, ele conclui, “tem que ser também diferenciada das outras, um pouco mais no alto, mais confortável”.
Apresenta-se de fato através dos comentários hilários “no avião você tem a primeira classe e a senzala lá no fundo”. Complementa “na sociedade você tem mulheres com bolsa Louis Vuitton e outras com saco plástico na mão”. E ainda “no trânsito, comenta que tem gente no fiat velho e outros na Mercedes ou jaguar”. Finaliza esta questão dizendo que com estas diferenças se sente muito bem e que veio ao mundo para os prazeres bons da vida.
Metido a filósofo, diz que está lendo um livro “fascinante” chamado “O dia em que Nietzsche chorou”. E começa a explicar quem era Nietzsche. Neste momento, mais uma intervenção do diretor, que o corta perguntando “o que é poder?” O empresário logo diz que tem uma predisposição genética para a liderança. E volta a “filosofar” comentando que tem outras “filosofias que defende”.
Imagens da natureza e corte para uma moça tomando sol no térreo de um prédio, vista de outra cobertura. Como contraponto, cenas de praias com poucas pessoas. Sombra de prédios na areia e água.
Cenas de um jovem estilo hippie chic em um estúdio tocando guitarra. Corte para ele na sala dizendo coisas contraditórias. Gago, começa contando vantagens, dizendo que o seu prédio é o mais alto dos vizinhos do quarteirão e por isso é tranquilo tomar banho de piscina e tocar, que não tem problema.
Diz que com ele não tem essa de playboy não, que os seus pais ralaram bastante, trabalharam muito, que isso não foi herança de ninguém, que eles trabalharam. E solta sua “pérola” ressaltando que se ele está aqui hoje é porque seus pais trabalharam muito para ele ter esta condição de vida boa. Este é um dos muitos picos cômicos.
E no final, no estilo jovem consciente, diz que ainda quer trabalhar muito para um dia ter a cobertura dele. Fala que está terminado o curso de direto, ressalta a importância do diploma, afirmando “ele faz a pessoa ser politizada”. E continua com o discurso do jovem consciente dizendo “o direto mexe muito com isso”. Diz que já estagiou em um escritório e aí deixa escapar outra “pérola” afirmando “o direito é o meu hobby”.
Imagens de escadas e mostra-se o andar superior, a área externa de uma cobertura. Áudio para do garoto dizendo que prefere tomar banho de piscina, que o mar tá sujo, tem tubarão. Outra “pérola”. E descontrai dizendo “tomara que corte isso, fazendo propaganda negativa da cidade”. Mas fica sério novamente em mais um surto de consciência plena e finaliza “aqui onde vivo não é a realidade do Brasil”.
Imagens de fachadas de prédios, de baixo para cima. Contraponto com imagens de cima para baixo, mostrando prédios em construção. Pescadores tirando uma rede do mar, vindo lixos como plásticos.
Imagens do trânsito. Noite. Luzes dos prédios. Área externa de uma cobertura.
Áudio do “baladeiro separado”, já entrevistado anteriormente, dizendo que é legal fazer um documentário sobre coisas boas, porque as pessoas só fazem documentário de coisas negativas. E diz “este Documentário é de coisa positiva”. Parabeniza o diretor dizendo que esta iniciativa é muito legal, muito bacana, e que não é o que ele tem se acostumado a ver. Mais uma “pérola” do filme.
Neste momento, outra, agora do diretor Mascaro respondendo “obrigado” sem aparecer. Filme repleto de “pérolas”.
Volta-se para a senhora e seu filho playboy, dizendo que é inigualável o prazer de poder desfrutar de uma cobertura, “ela é melhor que uma casa de praia porque está sobre todos, em cima”. O filho, do tipo que gosta de dizer as verdades filosóficas, diz que é “um fator inspirador que ajuda na abordagem do mundo, a segurança do ser está no que ele inspira e vive em sua intimidade. É realmente te dá força, benevolência, em sair de manhã e olhar isso aqui, eu moro aqui há 30 anos e não enjoo”.
Depois de falar de humildade, ela ainda lança mais uma: “aqui nós podemos falar com Deus mais facilmente”. Toda orgulhosa, ela mostra o seu aquário com anêmonas e peixes coloridos, a estátua de seu cachorro Bush que ela mandou fazer nos EUA e um “raccoon” (animal que ela diz ser do tipo esquilo) chamado Papuseldo.
O filho comenta sobre a aparição de Marte, fenômeno iria ocorrer em breve e que proporcionará duas luas no céu. Afirma que a sua vista está garantida. Mas, caso esteja nublado e não dê para ver, vão alugar um avião para ver em cima das nuvens.
Imagens de avião no céu, entre os prédios. O assunto gira em torno de segurança e ela diz se sentir muito segura. O filho comenta que lá tem mais de cinquenta câmeras.
Ela, olhando desconfiada, deve ter pensado “ele deixa eu falar o que eu quiser, fica perguntando coisas gerais, nada específico, tá tudo muito estranho”; pede para dar uma parada na filmagem.
Mascaro, sem deixar passar a oportunidade de documentar aquele momento, mesmo que parcialmente, em “cheque mate”, fecha o vídeo, mas continua captando o som.
Em black, só no áudio, ela diz que ele tem que pensar em perguntas ou assuntos, que “está muito, muito …”, mas não consegue exprimir seu desconforto. Diz finalmente que o documentário não está sendo muito objetivo.
Mascaro pergunta o que ela quer falar ou o que pode mudar para melhorar.
Ela não sabe dizer, fala que ainda não lhe ocorreu e pede licença, fala que vai deixar o filho um instante com a equipe.
Mascaro pergunta se ela vai voltar. Ela diz que não. E neste momento, Mascaro abre novamente o vídeo e mostra o filho que dá uma risada do tipo “essa é minha mãe, sempre aprontando alguma”.
Os créditos finais entram após imagens feitas de dentro para fora de um elevador panorâmico subindo, mostrando as coisas externas a ele, na medida em que o elevador sobe, mostra-se a fachada espelhada do prédio vizinho.
Vale a pena ressaltar que, além de inúmeras metáforas já citadas, o próprio nome do filme, “Um lugar ao Sol”, traduz uma forma de dar “voz” à esta elite, ou seja, dar um espaço para ela se pronunciar.
Ganhador de prêmios e selecionado para ser exibido em vários festivais de cinema, o documentário de Gabriel Mascaro – que depois dirigiu obras como “As domésticas” e “Boi Neon”, entre outras – cumpre metaforicamente este papel.
“Um lugar ao Sol” pode ser assistido aqui.